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sábado, março 18, 2023

Nada será como antes

(A trilha sonora recomendada é homônima)

Vivemos sensações semelhantes aos clichês de filmes distópicos, nos quais o mundo parou num período em que há hegemonia de gente que prefere deixar aflorar sua parte podre. Mas, talvez, isso que sobressai apenas esteja patente nos meios de comunicação, nas formas expressadas nas redes sociais.

Recebi na minha bolha dezenas de vídeos do inominável pulando de uma lancha na Praia Grande/SP. Vou ficar apenas nesse exemplo para não amargá-los com outras tantas odes à morte. Não me conformo nem com essa febre de compartilhar acontecimentos hediondos, nem tampouco com minha curiosidade mórbida em abrir os arquivos. Delineia-se na minha imaginação a promoção macabra das peripécias criminosas desse você-sabe-quem desde aquele capítulo do famigerado CQC, passando por todas as peças promocionais televisivas excitadas de negacionismos e nonsense, explorando a estética fascista e atingindo o êxtase nas redes sociais, hoje, agora, todos os dias. O dia não se completa se ele e os seus não pulverizarem seu veneno em todos nós, os que o odiamos, os que se omitem e os que os amam, provavelmente por odiar a si próprios, à sua própria mediocridade.

Sinto-me tão mal em escrever isso tudo. Parece que estou reforçando aquilo que desejo combater com unhas e dentes. Refiro-me ao nosso equívoco coletivo em insistir na divulgação das performances criminosas dessa gente, exatamente aquilo que eles desejam proliferar. Os que o fazem, obviamente têm a intenção de denunciá-los , mas são centenas de vídeos que insistem em nos machucar de forma sadomasoquista, especialmente nas bolhas progressistas, humanistas, esquerdista e afins. Ou, nas suas hostes, fazer sua gente gozar de satisfação por auxiliá-los na pregação da morte. O que queremos com isso? Expor suas peças publicitárias na esperança de sensibilizar muito mais gente? Mas o que vai se insinuando é que estamos morrendo por dentro ao ruminarmos essas desgraças, a cada vez que ligamos o smartphone, o laptop, a TV, entre outros alienantes aos quais estamos majoritariamente presos.

Salto ao passado, sem nostalgia. Reporto-me, ilustrativamente, à forma e conteúdo como nos comunicávamos nos anos 70, 80 e 90 para disputar hegemonia na sociedade visando um País justo, soberano, igualitário e democrático. Vou me arriscar por um assunto sobre o qual participei apenas como coadjuvante, ativista, cidadão. A estratégia era heterogêneas. Dividíamo-nos entre divulgar nossos desejos ideológicos e propostas políticas com a nossa linguagem por meio de boletins, panfletos, jornais, manifestos, pichações, publicações de teses, charges, poesias, poucas oportunidades de artigos na grande imprensa e, nesses mesmos veículos, tentávamos matérias sobre nossas ações sempre com resultado muito aquém do factual e francamente desfavoráveis, na sua grande maioria.  Comunicávamos por meio de processos formativos variados, nas assembleias, nos sindicatos de trabalhadores, nas associações de moradores, na luta pela terra, nas portas de fábrica, nos centros comercias de rua, nas ONGs de base popular, nas pastorais e comunidades de base, nos núcleos, comitês, diretórios dos Partidos, no futebol de várzea ou nos babas, nos movimentos de apoio à causa indígena, nas lutas socioambientais, nas terras indígenas e quilombolas, nos movimentos contra o racismo, nos movimentos feministas, no teatro de rua – em especial o Teatro do Oprimido, nos blocos de carnaval mais críticos e em vários outros espaços.

Nessas disputas, às vezes partíamos pra porrada (vez ou outra contra nós mesmos), mas o que predominava era o diálogo democrático entre os trabalhadores, estudantes, comunidades etc. Era frequente a ida de casa em casa, milhões de reuniões pequenas, bilhões de conversas cara a cara, toneladas de convocatórias, manifestos e congêneres distribuídos de mão em mão. Fomos muito felizes quando nossos interlocutores topavam o debate, aceitavam os boletins de bom grado, mesmo com discordâncias. Era muito gratificante parar com carro de som nas esquinas, nos pontos de ônibus, na zona industrial, no comércio, nos povoados rurais, a bradar nossos pontos de vista e de nossas organizações e enfrentar o debate. Éramos bons nisso; ainda somos? Nosso discurso era revolucionário, era firme, era embasado, era coletivo, era com amor e com raiva de tantas injustiças históricas. Não tínhamos nada de cinismo, certamente alguma ingenuidade, mas com muita esperança de que nossos valores, nossa pauta, estavam sendo pouco a pouco aflorados no íntimo político e ideológico dos cidadãos. Continuamos assim?

Opa! Teria eu escorregado pelas fantasias de minha geração? Talvez. Isso tudo fica muito marcado na gente. Demos boa parte de nossas vidas para melhorar o mundo, o Brasil, nossas cidades. Continuamos nessa luta com a energia necessária? Uns mais, outros menos, mas é certo que tudo isso ficou arraigado em todos nós.

A questão é: temos como parar de promover, por meio de compartilhamentos nas redes sociais, o que há de pior neste País? Mesmo tendo certeza de que nada será como antes, nada mesmo, conseguiremos explodir as bolhas, entender o que o outro sente de verdade, compreender e falar sua linguagem ou como percebe seu lugar no mundo, na sua comunidade e na sua casa (quando houver), como enfrenta as dinâmicas do capitalismo, as opressões de gênero, cultura, raça e geração? Seremos capazes de organizar novas estratégias formativas mútuas e cooperativas para todos, começando por mim e por você, em que prevaleça a construção coletiva do conhecimento e que sejam radicalmente emancipatórias e estimulantes do pensamento crítico e sua exposição pública?

Já tem muita coisa acontecendo. As matérias e artigos desta Ciranda vêm expondo isso, mas temos maturidade para uma compreensão mais global e sistêmica que nos encante e motive para uma guinada? Precisamos revalorizar todas as expressões da esquerda (ou dos que defendem a vida) ainda que precisemos, ser oxigenados (sic), que passemos a compreender as virtudes de nossa diversidade, no campo e na cidade, nos guetos e aldeias, no hip-hop e no maracatu. E a juventude contemporânea, com sua originalidade e entusiasmo que lhes são característicos, já está pronta para liderar a guinada necessária, com renovada cultura política e amor nos corações e mentes?

(revisão Maria Silvia Tosato)

capa: Imagens arquivo Câmara dos Deputados

 

 

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