As irmãs Isabelle Lins e Gabrielle Lins estudaram medicina na Universidade do pai delas, a Universidade Nilton Lins. Elas estão entre os primeiros brasileiros vacinados contra a Covid 19. Conseguiram prioridade na fila depois que foram nomeadas pelo prefeito de Manaus, David Almeida, do Avante, como gerentes de projetos da unidade de saúde que também tem o nome do pai delas, a UBS Nilton Lins, que por sua vez fica na Avenida Professor Nilton Lins, no bairro das Flores, em Manaus. Pelo mesmo decreto, um outro jovem médico, David Dallas, filho do ex-deputado estadual Wanderley Dallas, do Solidariedade, também encabeçou a lista de prioridades.
E foi assim que a aristocracia manauara conseguiu ficar vários lugares à frente de profissionais de saúde que enfrentam o dia a dia de um sistema de saúde colapsado, e de idosos que morrem asfixiados por falta de oxigênio nos hospitais.
O caso de Manaus é gritante. Mas está longe de ser o único.
Em Jupi, no interior de Pernambuco, a secretária municipal de saúde, Maria Nadir Ferro, tomou a vacina mesmo sabendo que não estava na linha de frente de combate à pandemia e ofereceu o imunizante para o fotógrafo oficial da prefeitura, Guilherme JG.
Em São Paulo, a fila foi furada no modo atacado. O estado garantiu a vacinação de todas as pessoas vinculadas ao complexo do Hospital das Clínicas (HC). O carimbo de “profissionais de saúde na assistência a pacientes” foi usado indiscriminadamente e garantiu vacina para professores da Faculdade de Medicina em homeoffice e estudantes de pós-graduação que não precisam entrar em hospitais. Com doses em abundância, deu até pra fazer graça e sortear vacina para os voluntários que trabalham no complexo.
O início da vacinação contra a pandemia do coronavírus trouxe à luz a tradição de tratar privilégios como se fossem direitos, o público como propriedade privada e a solidariedade apenas como nome de partido político. Tradição que a gente até tenta manter disfarçada sob o verniz da modernidade e da “democracia”, mas nas horas mais agudas, não consegue ser contida e a embolorada oligarquia brasileira coloca a cara no sol e sai desfilando nas avenidas, ou no caso, nos serviços públicos de saúde, pelo país afora. Claro, levando no colo sinhazinhas e sinhozinhos que sempre tiveram a certeza de que não lhes faltará o oxigênio.
Não é coincidência encontrar entre os perfis dos que furam a fila da vacina, os mesmos rostos dos que ajudaram a furar a fila da democracia, apoiando o golpe de 2016 e a consumação deste com a eleição de um presidente que ovaciona a ditadura militar e defende a tortura como método de governo.
Um raio-x no HC de São Paulo e na Faculdade de Medicina da USP revela as íntimas relações entre os integrantes da instituição com o PSDB – o partido que lançou as bases para o impeachment de Dilma Roussef e que acabou atropelado pelo golpe que alimentou. Na lista dos primeiros escolhidos para receber a vacina em São Paulo está pessoas que ocupam postos chaves no governo comandado pelo tucano João Dória.
Já uma breve estalqueada nas redes sociais dos jovens médicos de Manaus mostra a afinidade ideológica deles com o capitão que ocupa a cadeira de presidente.
Ainda bem que houve quem fuçasse as redes e ajudasse a escancarar a incoerência dos jovens privilegiados de Manaus que votaram em quem defende cloroquina, mas não se constrangem em usar a estrutura pública que possibilitou a existência da Coronavac.
Ainda bem que houve quem denunciasse a falta de critérios do HC de São Paulo e tornasse visível o pacto que garante a blindagem de meia dúzia de pessoas que acreditam pertencer a uma espécie de Olimpo à brasileira.
Houve constrangimento público dos que atrasaram o acesso à vacina a quem de direito e até os ministérios públicos estaduais tiveram que se mexer para prometer apuração de desvios.
Foi a capacidade de alguns se indignarem contra a injustiça que possibilitou a discussão pública. E é nessa indignação que reside a esperança. É essa capacidade de indignação que precisa ser lembrada para que a guerra das vacinas do século XXI deixe espólios que permitam novos pactos sociais para uma sociedade menos desigual, mais solidária e mais democrática.
Mas como diz Caetano, é preciso estar atento e forte.
Depois da repercussão negativa dos fura fila, o prefeito de Manaus agiu. Não para acabar com os privilégios, mas para escondê-los. Proibiu a postagem de fotos das pessoas tomando vacinas nas redes sociais.
Reproduziu no nível local a mesma política de esconder informações de interesse público que vem ditando as regras no nível nacional e que fez com o Brasil, antes reconhecido por seu Sistema Único de Saúde e o maior programa de imunização do mundo, siga amargando o segundo lugar entre os mais atingidos pela pandemia do novo coronavírus, atrás apenas dos Estados Unidos que nem sistema público de saúde têm.
Quando esse texto estava sendo fechado, o país contabilizava 217 mil mortos por covid 19 e quase 9 milhões de casos confirmados da doença. Não dá para esquecer a dor e o sofrimento causados pela maior pandemia em 100 anos. Não dá para apagar da memória as imagens das câmeras frigoríficas para armazenar corpos ou dos sepultamentos coletivos por falta de gente para abrir valas nos cemitérios. Não dá pra esquecer o aumento do desemprego e da pobreza causado por uma política que evitou medidas mais duras de isolamento e que, se tomadas, teriam facilitado, há tempos, a retomada da economia. É vacina de sobra para imunizar um país inteiro contra a indiferença, o autoritarismo e o obscurantismo. Vamos fazer valer?
Legenda: O médico recém-formado David Dallas, um dos primeiros a tomar vacina no país, virou meme nas redes sociais. O jovem apoiou a eleição de Bolsonaro, o presidente que distribui cloroquina e só fez atrasar o acesso à vacina. Imagem: Twitter